Sobre Conspirações e Conhecimento
O que a visão platônica sobre o conhecimento tem a ver com teorias da conspiração?
Que a Terra não é plana, não surpreende ninguém — ou, ao menos, de que esta é a visão mais amplamente aceita hoje em dia. Não obstante isso, há um movimento crescente e vocal que coloca-se contra essa visão, que é o “terraplanismo”.
Meu propósito neste post não é de explicar por que o terraplanismo é incorreto, nem de fazer mais um post auto-vangloriante sobre como esses caras são mais burros do que eu, que sou superior por saber que a Terra, de fato, não é plana1.
O objetivo é tentar entender como uma teoria “obviamente” falsa ganhou a boca do povo. Ela possui algum fundo de verdade, que permite que ela seja tão crível? O que esses caras sabem? Eles sabem coisas? Vamos descobrir!
Teoria platônica do conhecimento
O próprio significado de “saber algo” não é bem-definido. Uma das primeiras teorias à qual a epistemologia realmente se agarrou2 vem de Platão.
Em Teeteto, Sócrates/Platão propõe a seguinte tese sobre o que significa “S sabe P”:
P é verdadeiro;
S acredita que P é verdadeiro;
S está justificado em acreditar que P é verdadeiro
Muitas coisas estão pressupostas nessa tese: por exemplo, qual é o critério de decisão para que algo seja “verdadeiro”? Para este problema de terraplanismo, eu vou considerar a coisa mais simples:
Se a teoria é falseável experimentalmente,
e se teoria foi experimentalmente verificada como falsa3,
Então a teoria é falsa.
Pois bem, sabemos que a Terra não é plana por várias formas, umas das quais data de cerca de 240 a.C. (mais de 2000 anos atrás!): não só logicamente, como também experimentalmente sabemos deste fato. Sabendo isso, a coisa mais fácil é refutar o argumento terraplanista e fim, e considerá-los “burros” por não entenderem o erro e a teimosia em que incorrem.
Porém, isso não considera pelo lado deles4: na visão de um terraplanista, ele está cumprindo os quesitos de “estar justificado em acreditar que P é verdade” e “acreditar em P”! Afinal de contas, se formos sinceros, não é óbvio o fato de que vivemos em um mundo (quase) esférico! E isso a própria área da Geometria Diferencial atesta: a Terra é localmente plana5, e isso é indiscutível, sabemos trivialmente isso. O erro em que o terraplanismo incorre é de pressupor que a Terra é globalmente plana — e isto é experimentalmente falso.
Portanto, não é tão sutil quanto dizer que “é óbvio que a Terra não é plana”.
Contudos: Problema de Gettier
Eu trouxe essa teoria platônica do conhecimento somente como uma heurística para pensar um problema de teorias da conspiração. A própria teoria platônica possui refutações, a mais famosa sendo o “Problema de Gettier”.
A ideia geral do argumento é a seguinte:
Eu creio que todo z, ao satisfazer P(z), satisfaz também Q(z)6;
Além disso, eu pressuponho que algum X específico satisfaz P(X);
Portanto, eu concluo que existe algum y que satisfaz Q(y) (que, ao meu ver, é X, em específico)7
Matematicamente, seria algo como
Porém, ao supor isso, eu posso incorrer no erro de que este X específico não satisfaça P(X): eu posso estar errado sobre esta asserção, concluindo incorretamente que vale Q(X). Portanto, minha conclusão de que existe algum y tal que Q(y) não tem obrigação alguma de ser verdadeira.
Ao mesmo tempo, caso exista algum outro elemento z, fora do meu radar, que satisfaça Q(z)8, então minha conclusão acaba sendo verdadeira — mas não pela minha dedução!
Portanto, por mais que eu tenha satisfeito as três propriedades do conhecimento platônico, não parece correto que eu saiba que “existe algum y tal que Q(y)”: calhou que eu “tive sorte de estar certo”.
E agora, José?
"Nunca acredite que antissemitas [ou qualquer fanático, for that matter] são completamente alheios ao absurdo de suas respostas. Eles sabem que seus comentários são frívolos, abertos à interpretação. Mas eles estão se divertindo, pois são seus adversários que são obrigados a usar palavras responsavelmente, já que eles acreditam em palavras. Os antissemitas têm o direito de brincar. Eles até mesmo gostam de brincar com discursos, pois, dando razões ridículas, eles tiram o crédito da seriedade de seus interlocutores. Eles sentem prazer em agir de má fé, já que não buscam persuadir por argumentos sãos, e sim intimidar e desconcertar. Se você pressioná-los o bastante, eles abruptamente se calam, indicando por frases altivas que o tempo de discussão já passou. Não é que eles tenham medo de serem convencidos. Eles só temem parecer ridículos ou estragar, por vergonha, suas esperanças de trazer uma terceira pessoa para seu lado." (Jean-Paul Sartre)
Portanto, a teoria platônica do conhecimento não é para ser levada tão a sério assim, nos dias de hoje. Eu trouxe ela com um propósito específico: de destacar que a mentalidade científica atual, de rebaixar àqueles que acreditam em teorias da conspiração — seja terraplanismo, seja o povo anti-vacina ou o que seja — como “intelectualmente inferiores” pode estar sendo mais contraproducente do que útil9.
A reação defensiva ao se ler isso é “ora, então você propõe que a gente não faça nada?”, e é óbvio que não é meu ponto. Não é novidade que estes discursos anticientíficos são propagados em massa por think tanks reacionários, por gente com muito dinheiro, com fins ulteriores que nada têm a ver com terraplanismo ou vacinas: são fins políticos, ideológicos, hegemônicos. Portanto, requer-se que haja, sim, uma contra-pressão a este movimento, que coloca-se, principalmente, como anti-intelectual, anti-racionalidade — portanto, anti-revolucionário, posto que busca mascarar facetas da realidade, tanto natural quanto social.
Mas, se vamos ser científicos quanto a isso, devemos olhar para o cerne do problema em si, e ele mostra-se como sendo algo além da racionalidade. Não trata-se somente sobre convencer racionalmente às pessoas que acreditam nestas teorias, tanto porque elas podem alegar algum argumento da ordem de “hegemonia intelectual” ou de “mas isso é sua opinião” ou qualquer coisa, qualquer coisa — não se pode forçar alguém a acreditar naquilo que ela não quer acreditar.
Não, o problema em si jaz além da questão da crença e da razão. Ao meu ver, jaz nos problemas materiais do povo e das decorrências destes: “metade da população brasileira não dorme porque tem fome; a outra metade não dorme porque tem medo de quem tem fome”10. Além disso, é um país em que a grande maioria das pessoas não possui uma educação básica, e digo isso no sentido de que não tiveram espaços para exercitar o raciocínio lógico11. Arrisco até dizer que a adoção em massa de teorias da conspiração — que, por mais que sejam propagadas pela direita, são adotadas pelo povo em geral12 — é uma forma em que o indivíduo luta por um pouco de “autonomia” em um mundo que oprime-o e despoja-o de agência. Mas isso é conversa para outro dia.
Referências
Trechos dos textos de Platão disponíveis em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7828909/mod_resource/content/1/HCTex-Platao-Conhecimento.pdf
GETTIER, Edmund. “Is justified true belief knowledge?”, 1963. Disponível em: https://fitelson.org/proseminar/gettier.pdf
Uma tradução deste artigo está disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/index.php/perspectivafilosofica/article/view/230219/24457
🤓☝️.
Não é minha área, não sei de todas as teorias epistemológicas, obviamente não teve uma “primeira” teoria do saber, etc. Estou falando do Ocidente na Era Comum, basicamente.
Nisso, claro, eu pressuponho a honestidade intelectual do experimento, e da suposição de que o resultado do experimento permite uma conclusão lógica e não-ambígua sobre alguma tese. Para os mais pedantes, tudo acaba sendo uma definição circular, mas o fazer científico em si (sobre o qual estou fundando meu argumento) possui essa “quebra de simetria” no tocante a relativismos, ao fincar seu pé sobre a “realidade material”: se eu acreditava que só existem cisnes brancos, e eu vejo um cisne negro, então minha crença é falsa, e ponto final: ela não sustenta-se sobre a realidade material.
Não num sentido de pós-modernidade de que “a verdade depende do ponto de vista”.
Vendo uma esfera S¹ como uma variedade diferenciável, temos que qualquer aberto em sua topologia é localmente Euclidiano, i.e. “pequenas regiões” da superfície de uma esfera são homeomórficas (efetivamente “idênticas”) a um plano bidimensional.
Leve [auto-] jabá™: Caso seja de interesse, eu dei uma palestra sobre Topologia em 2019, na entidade Dead Physicists’ Society do IFUSP, e um amigo meu, Thomas Bastos, deu uma palestra sobre variedades diferenciáveis e relatividade geral na semana após.
O exemplo de Gettier é um tanto convoluto: “(Jones é o homem que ganhará o emprego) e (Jones tem dez moedas em seu bolso)”, e eu assumo como verdadeiro que “Jones é o homem que ganhará o emprego”.
Pelo exemplo de Gettier, eu concluo que “há alguém que tem dez moedas em seu bolso”.
No exemplo de Gettier, o próprio agente que formulou a tese (Smith) tinha dez moedas em seu bolso; portanto, sua conclusão era, no final das contas, verdadeira, embora não se tratasse de sua pressuposição inicial sobre Jones.
E também não ajuda tentar convencer as pessoas de seus erros depois de chamá-las de “burras”… note to self.
Josué de Castro (embora ainda seja uma estimativa bem otimista, ao meu ver).
Até isso cai no perigo de que eu esteja “inferiorizando” o brasileiro médio, posto que, mesmo que uma pessoa não possua educação formal, ela é mais do que capaz de ter raciocínio lógico. Digo no sentido de exercitar o raciocínio lógico, conscientemente, para além de conclusões lógicas imediatas: pense, por exemplo, da ideia do átomo e de como tudo é composto dessa “coisa” invisível aos olhos, e de como ela não é uma coisa imediata a quem não tenha sido exposto a ela previamente e que possa ver suas conclusões lógicas/ideais no mundo real em que vive.
Assumir que a adoção dessas ideias automaticamente induz que a pessoa seja de direita também é uma visão contraproducente, ao meu ver.